terça-feira, 9 de dezembro de 2025

BENDITA GENTE NOSSA

     

Capa - Imagem da internet 

   Se aproximando do dia de lançamento do Almanaque Caiçara, do amigo Bado Todão, me detive em recordar as muitas iniciativas já presenciadas e vividas neste chão caiçara de Ubatuba. Quantas coisas boas conseguimos graças a toda essa gente que foi cruzando pelos caminhos!? Certamente que o Bado é uma dessas pessoas que não esmorece, sempre encara os desafios e é capaz de nos alegrar na esperança. Viva esse grande artista caiçara!


Benditas as mãos que revolvem terras, semeiam esperanças, colhem curas e satisfazem corpos.

Benditos os lugares que nos acolhem e mostram caminhos.

Benditas as vozes que não se calam perante as injustiças.

Benditas as pessoas que mostram alternativas solidárias.

Benditas todas as formas de resistência ao ódio.

Benditos os olhares que captam preciosidades no cotidiano.

Benditos os braços que se entrelaçam para seguirem em frente.

Bendita a devoção ao ar puro e às aguas cristalinas da nossa terra.

Benditos os talentos postos a serviço da vida.

Benditas as mãos que afagam sonhos.

Benditos os ombros amigos que nos sustentam.

Benditos os projetos que promovem vidas.

Benditas as iniciativas que alimentam nossas utopias.

Benditas sejam as pessoas que sonham em mutirão.


Bendito o Bado e sua família a vencer desafios e permitir nossa felicidade.


Bendita a nossa gente que crê na força da natureza e em toda beleza.


Bendita a comunhão de nossos espíritos agora e em outros momentos.


Salve, Bado! Salve, Denise! Salve, minha gente!


Lançamento: 10/12 - 19 horas - SETUR , na Avenida Iperoig, 214. Ubatuba

segunda-feira, 8 de dezembro de 2025

MÃOS QUE ACOLHEM

 

Estrada - Arquivo JRS 

  As mãos sujas pelo trabalho honesto me cativam, mas aquelas que se sujam na prática das injustiças e das maldades me assustam. A falência da humanidade está evidente na violência contra as mulheres, às minorias sociais, às crianças e jovens, à classe trabalhadora... Como se omitir em ver se alastrar o ódio às mulheres, às geradoras de vidas? Como não se posicionar contra o desprezo pela vida dos seres fragilizados? 

  Ontem, na beira da rodovia, um cachorro zanzava sem rumo. Saiu de casa? Fugiu dos maus tratos? Foi abandonado? Diante de um quadro horrível, onde um pai espancava, parecia querer matar o próprio filho, não teve como deixar para lá. O jovem chorava pelo ódio desfechado por quem participou da sua existência. Quem sabe a queda daquele jovem não tenha sido causada justamente por um pai machista, que vive desmerecendo a família e nunca soube amar os seus? Quem sabe? Me recordei do pessoal que, em outros tempos, na beira da praia, se ajuntava no rancho das canoas para conversar e esperar ser útil em alguma tarefa (embarcar rede, empurrar canoa, ir pescar para poder levar algum peixe para casa...). Ninguém dali queria ser tratado como inútil. Pois é! Dizem que foi a partir de um grupo assim, desprezado, que uma certa liderança formou a sua equipe. Pessoas inseguras, mal amadas, incompreendidas, cheias de marcas e cicatrizes, brigando pela vida e o pão, se sentindo muitas vezes como os animais abandonados pelas rodovias, se tornaram essenciais no anúncio das boas novas daquele jovem galileu, nas terras da Palestina. Deste lugar distante a turma desprezada se lançou mundo afora.

   Muito me alegra saber que existe gente e instituições no ideal de acolhimento e de encaminhamento às pessoas maltratadas e perseguidas pelas mãos sujas de maldades. Ao me deparar com medonhos quadros, partes da receita fascista tão estimulada na atualidade, eu vou me corroendo. Esses sofredores e sofredoras estão denunciando a nossa falência enquanto humanidade. São profetas e profetisas que anseiam por um mundo melhor, onde não precisamos de  muito para ser feliz. Justiça, acolhimento e carinho são as bases dessa utopia. Precisamos urgentemente ser gente nova, renovadas!


sábado, 6 de dezembro de 2025

OUVIR A NATUREZA

 

Alto do Morro - Arquivo JRS 

   O dia está quente, a mata bem verde, com pouca diversidade de espécies porque eucaliptos e pinus foram despejados no meio da mata original. Enfrentamos um morro bravo, com muitos espinhos. Por não se precaver como devia, a sede aperta; estamos em busca de um rio que não haveria de estar muito perto. Um bando de macacos fazendo barulho perto da grota dão o sinal: "É por ali, estamos no rumo certo". Vou prestando atenção, reparando nas plantas: tem muitas ingazeiras, algumas caneleiras, uns pés de guairanas... Chama a atenção uma espécie de taquara que não é oca: "É a rapacar", disse o Zé Paulo. Mostro uma planta especial: "Esta é a pixirica, os passarinhos adoram". A cachorrada segue junto, de vez em quando desaparece, descobre caminho mais antigo que parece obstruído em vários trechos. "É um velho acesso à água, sigamos em frente", creio eu. Trechos emaranhados, chão encoberto pelo longo tempo sem uso, mas é trilha, caminho dos antigos que olhos acostumados não se enganam. Peço silêncio para ouvir algo, alguma bulha. Ouvir é mais do que escutar. Nada; até os macacos emudeceram. Certamente perceberam a nossa aproximação. É assim mesmo: os animais silenciam porque não sabem o que se aproxima, são curiosos, mas preferem se esconder para observar melhor. "Estamos bem no alto, por aqui estão nascendo olhos d'águas, por isso não tem barulho. Só mais abaixo esses veios se juntam e se tornam rio ruidoso, som de calmaria nas almas. Pena que mais abaixo, no bairro, receberá esgotos e lixos". "Será?", pergunta alguém. "Sim, eu já vi as valetas sujas chegando nele. Plásticos de todo tipo se dependuram em galhos logo abaixo da vila. Disto eu sou testemunha", afirmei categoricamente. De repente avisto uma folhas diferentes: "São folhas de caetês e de ciosa. É ali, naquela direção está a água! Chegamos, gente!". Era mesmo uma área encharcada e alguns poços de límpida água. Ao redor, por ali tudo, havia pegadas de diversos bichos e aves. Eu me ajoelhei primeiro para saciar a sede. "Que bom, né pessoal? Tem coisa melhor que achar uma água assim depois de tanto andar à procura?". "Todos saciados? Agora é romper todo caminho novamente, voltar prestando mais atenção nas marcações deixadas para não se perder", dei o ritmo. Um detalhe que não percebemos na subida: um esqueleto de cobra ainda cheirando ruim. Pergunto ao grupo: "Qual bicho será que a matou e comeu sua carne deixando apenas o esqueleto?". Deduzo que não foram os vermes porque o chão está muito seco, limpo, sem sinal algum. Só sei que dela algum ser se alimentou.  


quinta-feira, 4 de dezembro de 2025

BITO MADALENA

 

Bito Madalena - 2017 - Arquivo JRS

Terreiro dos Antunes de Sá - 1992 - Arquivo JRS

   Foi-se Benedito Antunes de Sá, vulgo "Coruja", mais conhecido como Bito Madalena pelos mais antigos. Era o ano de 1981 quando eu conheci toda a família na velha casa de pau a pique do Saco dos Morcegos. Mais tarde, com a árdua tarefa de transportar blocos e outros materiais no barco, foi levantada a casa no alto do morro, de onde se avista todo o mar aberto, as ilhas e praias do Saco das Bananas e do Simão (Praia Brava do Frade). A idade chegou, a esposa faleceu, os filhos foram se mudando em busca de melhores condições... Que fez o seo Dito? Foi morar na praia da Caçandoca depois do presidente Lula oficializar a área do quilombo há duas décadas e pouco. 

   Voltando ao começo desta, naquele distante ano de 1981, seo Dito e dona Constantina me receberam de forma bem caiçara, com café, farinha e peixe assado. A minha intenção era passar rápido, seguir a caminhada, mas não consegui rejeitar a dormida porque era muito assunto e grande a alegria em conviver com aquela imensa família. O momento marcante: ele (Dito) foi até a camarinha (quarto) e trouxe um gomo de bambu bem escurecido. Dentro dele havia um documento muito antigo: era a escritura da Fazenda dos Morcegos, a parte que coube ao finado avô. Mais ou menos assim ele resumiu a história:

   "O meu bisavô era dono da grande fazenda Caçandoca. Tinha três filhos. Após a morte dele, aconteceu a repartição das terras: um deles ficou com a parte da praia da Caçandoca e Caçandoquinha, a outro coube a praia da Raposa, Ponta Lisa até o alto daquele morro ali, onde é a Mata Virgem. O Saco dos Morcegos, pegando o Saco das Bananas, a praia do Simão e indo até a Pedra do Um (Pedra do Frade) - tudo isso - ficou com o meu avô. Na verdade, a terra original começava na costeira da Maranduba, na Pedra do X (Pedra do Cruzeiro, na costeira do cemitério) e chegava até a Pedra do Um (Pedra do Frade, quase chegando na praia da Lagoa). Hoje aqui estamos nós; a vizinhança toda são os primos. Logo ali é o Dominguinho, depois dele, na subida do morro, é onde mora o Caçula. No caminho está o meu sobrinho Clodoaldo. Na costeira, onde está a ruína da fazenda, era a casa do Ditinho até pouco tempo. Hoje não mora quase ninguém, até a escola não funciona mais. O meu povo todo se mudou, foi para Caraguá e outros lugares mais perto, tipo Morro da Quina, Sapê, Tabatinga, Maranduba..."

   Depois dessa primeira ocasião, eu voltei muitas vezes ao Saco dos Morcegos e adjacências, participei de pescarias e de outras artes por lá. Creio que ajudei na resistência aos jagunços que tocavam terror aos pobres do lugar no começo da década de 1990. Testemunhei muita coragem do seo Dito! Eu tive a honra de inesquecíveis prosas e convivências  junto ao agora saudoso Bito Madalena e seus familiares da grande família caiçara. A vida é assim, nós passamos por ela... 


Benedito Antunes de Sá - Arquivo Charles

quarta-feira, 3 de dezembro de 2025

VERDADEIRAS MENTIRAS

 

Dormindo ou morto? - Arquivo JRS 

   Vivemos, na atualidade, um dilema: ter de desconfiar até mesmo de vídeos com pessoas compenetradas, parecendo tratar de temas sérios, fazendo denúncias etc. É que, graças ao avanço da tecnologia, se tornou muito fácil distorcer paisagens, fabricar imagens, colocar falas e cores... Enfim, passar, de modo muito convincente, uma mentira como verdade. Imagine esse poder atuando sobre as mentes mais ingênuas, sobretudo naquelas em que até sinistros líderes religiosos conseguem provocar reações das mais descabidas e inimagináveis. Imaginou? Dias desses chamei a esposa para ver uma criança brincando com um animal. Achei bonito. Ela, fixando na tela, disse: "É inteligência artificial, alguém teve a ideia e foi criada. Não é verdadeira". Pois é, simples assim. Logo teremos mais eleições. Me pego pensando no estrago que farão essas mentiras criadas com recursos tecnológicos avançados. O que se esperar de mentes já dominadas pelos algoritmos, recebendo mensagens mentirosas? É assim: se alguém curte uma mensagem mentirosa, interage com ela, mais mensagens de mesmo teor chegarão a ela. Torna-se um poço sem fundo; serviço completo de alienação humana. É a lógica dos algoritmos. Entende agora o porquê dos grupos políticos mais reacionários se posicionarem contra a regulação das mídias? As mentiras se tornaram suas plataformas, seus programas de propaganda política, suas garantias de vitória nas eleições. O theinterceptbrasil divulgou que deputados da extrema direita estão querendo incluir o homeschooling no Plano Nacional de Educação, o PNE. O motivo é simples: eles querem inserir conteúdos ultraconservadores no currículo escolar, como vídeos do Brasil Paralelo, que distorcem a história e atacam consensos científicos. Consegue ver o tamanho dos problemas decorrentes dessas mentiras, as consequências delas? Você acredita que alguém vai deixar de acreditar no que viu e ouviu na tela digital para dar atenção à sua argumentação? Pior para o pobre que se torna pessoa conservadora. Mas conservadora do quê? Da sua própria pobreza, da sua ignorância, da sua submissão aos ricos e às ideias dominadoras! 


terça-feira, 2 de dezembro de 2025

A VERDADEIRA ECOLOGIA

 

Mandioca - Arquivo JRS 

   Jorge Galdino, grande companheiro que já nos deixou, nativo do bairro de Itaquera, na capital paulista, sempre foi sensível às causas humanitárias, muito se importou com os sofrimentos alheios fazendo vistas grossas aos seus. Por isso se lançou no mundo, militou na causa operária, brigou nos movimentos populares, fermentou boas sementes para a sociedade. Tornou-se padre. Andou por outras terras onde se sentia mais desafiado a lutar contra as injustiças. Sonhava em ir para a região norte do Brasil, morar nas terras dos Yanomami (porque, na década de 1980, era denunciado ao mundo o massacre contra esses indígenas, pais da cultura da mandioca e de tantas outras). Jorge era grande leitor, vivia por dentro das notícias, tinha um admirável senso crítico. Costumeiramente eu o procurava para me atualizar e ouvir suas considerações a respeito de diversos temas. Como dava satisfação prosear com ele!

   Era comum eu e Jorge estarmos juntos, participando de palestras, reuniões, debates em torno das questões sociais. Numa certa ocasião, quando a questão indígena o atormentava, ele me mostrou um texto do bispo da Prelazia de São Félix do Araguaia, dom Pedro Casaldáliga. Lemos e discutimos juntos com outras pessoas. O tempo passou, Jorge faleceu em missão humanitária fora do pais. Dias atrás eu reencontrei o dito texto e faço questão de apresentar agora aos leitores do blog:


   Ainda um apelo urgente: Os Yanomami estão morrendo. Em Roraima, de fato, está ocorrendo o mais eficaz genocídio da história brasileira, a extinção cultural e física de 9.900 Yanomami brasileiros, pela invasão de 50.000 garimpeiros e com a omissão cúmplice de todas as autoridades responsáveis, sem que sirva para nada nem a Constituição - nova e não aplicada - nem o clamor universal. A verdadeira ecologia amazônica é, primeiro, a população amazonense: os humanos que habitam esse habitat, a vida humana preservada em meio à preservada natureza. 


   Eis a face religiosa que eu admiro. Não continua atualíssimo a denúncia do finado bispo? Ele e o saudoso Jorge não estavam certos em lutar contra as injustiças sociais tão defendidas pelas pessoas  afinadas com ideologias de direita? 




sexta-feira, 28 de novembro de 2025

VELHOS COBIÇOSOS

 

Carobinha em flor - Arquivo JRS 

   Zé Roberto roda muito, leva um bom tempo para chegar ao seu local de trabalho. Vai pedalando uns quinze quilômetros, deixa a bicicleta guardada no quintal do Teteco porque diz que ali está bem guardada, sem perigo de ser roubada. Lamenta por viver assim, desconfiado de tudo, mas não pode dar sorte ao azar, pois a bicicleta é o meio de transporte dele e de mais gente que, estando de carro, sobretudo na temporada e feriados, querendo chegar logo em casa, acaba ficando parado no trânsito, sobretudo na Praia Grande. Disto se conclui que a bicicleta se torna uma solução possível.

   Paulo e Justino, ambos servidores públicos recém aposentados, moram no centro da cidade. Já não têm filhos pequenos e estão com suas vidas estabilizadas, sem preocupações essenciais, ganham o suficiente para viverem bem. Foi a respeito deles que Zé Roberto me contou o seguinte novidade:

   "Para mim, que sou relativamente jovem, é custoso ir todo dia a essa distância por causa do trabalho, mas não tem outro jeito. Agora me diga se há necessidade de dois homens já não tão jovens, aposentados, irem nessa mesma lonjura só por causa de dinheiro?". Pedi, então, que me explicasse melhor. Eu ainda não estava entendendo a que se referia o indignado amigo. "É o seguinte" - continuou ele - "Paulo e Justino resolveram abrir um bar lá no bairro, perto de onde eu deixo a bicicleta protegida. Sabe onde era a fábrica de blocos dos sócios Wilson e Nilo? Pois é, ali eles montaram um bar. Agora precisam viajar todos os dias se querem se estabelecer, ganhar freguesia, né? Será que eles precisam tanto disso ou é apenas cobiça? Quero ver se eles aguentam quando chegar a temporada, quando perderem horas nas idas e vindas. Não poderiam ficar em casa, curtindo suas famílias e netos que estão chegando sempre? E, além do mais, nem sei se ali é um bom ponto para montar um bar. São poucos moradores, famílias tradicionais, quase no pé do morro."

   Eu escutei e considerei os argumentos do Zé. Achei que ele estava com razão. Eu não faria esse sacrifício se não houvesse tanta necessidade. Me parece que a parceria dos dois aposentados se sustenta apenas na cobiça, na ânsia de ganhar mais dinheiro sem levar em consideração outros aspectos do resto de vida que têm pela frente. Eu, caso tivesse o tempo livre deles, sem querer ficar em casa atormentado a mulher, pegaria a linhada e iria pescar na costeira. Ou ficaria ali, na boca da barra, jogando baralho e conversa fora com a companheirada. Deixa pra lá, a vida é deles! Posso chamá-los de velhos cobiçosos?